03 de fevereiro de 2014

Filho socioafetivo divide herança com os biológicos

Na coluna de 11 de janeiro falei-lhes da questão que está sendo resolvida no Supremo Tribunal Federal - STF (ARE 692.186-PB, relator ministro Luiz Fux), em que há um conflito entre a filiação biológica e a socioafetiva. Qual das duas, num debate, deve prevalecer. Ou ambas devem ser consideradas, e a pessoas que têm dois pais ou tem duas mães?... É matéria importantíssima, que está sendo construída em nosso ordenamento jurídico.

Outro caso, ocorrido em Santa Catarina, envolveu a filha biológica de uma empregada doméstica que foi criada pelos patrões, tendo sido reconhecido que a moça tinha pai e mãe socioafetivos. A matéria foi divulgada pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM, e a seguir transcrevo a matéria, que talvez esteja publicada na internet.

Com a morte da mãe biológica, a mulher foi criada como filha pelos patrões, desde seus quatro anos de idade. Já no leito de morte, a mãe, doméstica da família, solicitou à patroa que ela cuidasse da filha caso morresse. A mãe afetiva concordou com o pedido, obtendo a guarda provisória da menina. Considerando a afetividade e os laços familiares construídos nessa relação, a 4 a Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça de Santa Catarina reconheceu a existência de paternidade e maternidade socioafetiva. De acordo com o desembargador Jorge Luiz da Costa Beber, as provas dos autos revelam que à filha socioafetiva, autora da ação, foi dedicado o mesmo afeto e oportunidade dadas aos filhos biológicos, sendo considerada membro do núcleo familiar.

"A prova dos autos é exuberante. No baile de debutantes, a filha socioafetiva foi apresentada como filha do casal. Quando ela se casou, eles foram contados como pai e mãe. Ela tinha os irmãos biológicos como irmãos. Quando nasceu o filho da filha afetiva, ele foi tido como neto, recebendo, inclusive, um imóvel dos avôs afetivos. Trata-se de uma relação afetiva superior ao simples cumprimento de uma guarda", avalia o desembargador.

Com a morte da mãe afetiva e consequente abertura do processo sucessório, a filha socioafetiva foi excluída da respectiva sucessão. Ela entrou com uma ação de reconhecimento de paternidade e maternidade socioafetiva para todos os fins hereditários. Com o óbito da mãe afetiva, abriu a sucessão e a filha afetiva não foi contemplada. Durante a disputa hereditária, abandonou-se esse amor construído por tantos anos", afirma o desembargador. A decisão foi unânime.

Para a diretora do IBDFAM/SC, Mara Rubia Poffo, a dissolução de uma união ou a condução de uma partilha de bens entre irmãos deve ser administrada com a ciência de que inúmeros sentimentos íntimos estarão misturados às questões jurídicas, exigindo do procurador, do julgador e demais auxiliares um preparo técnico e subjetivo para não apenas aplicar a lei ao caso concreto, mas, sobretudo, garantir a dignidade humana dos membros daquela família desconstruída. "Desse modo, entendo que a decisão do nobre Julgador foi ao encontro a todos os atuais princípios de direito de família, demonstrando, inclusive, uma tecnicidade própria de uma familista" completa.

Para o desembargador, é preciso avançar nessa temática e ampliar esse tipo de decisão para outras relações como as homoafetivas e o reconhecimento de filhos de casais do mesmo sexo. A diretora do IBDFAM, Mara Rubia, considera que a decisão vem corroborar com a noção de que o afeto é, no atual direito de família, o princípio basilar de qualquer relação, independente de cor, credo, condição econômica, social, etc. "Entendo que a decisão não quis abordar exclusivamente a relação de filha de doméstica com os patrões, mas sim uma relação de amor, carinho, cuidado, que pode nascer em qualquer relacionamento, independente do motivo que inicialmente ligou as pessoas envolvidas", completa. Ela relata ainda que todas essas decisões são um indicativo de novos tempos para o direito de família em Santa Catarina. Mostram que o Tribunal Catarinense está se inclinando ao atual direito de família, e aproximando-se de cortes como a de Minas Gerais e Rio Grande do Sul, berços das decisões pioneiras em nosso País.

Mas, cuidado: este tema não se presta a generalizações, cada caso é um caso, com as suas circunstâncias. Não há uma solução para todas as questões. Conheço uma situação que não se enquadra no exemplo dado acima, de Santa Catarina. O casal tem três filhos biológicos e desde que a menina nasceu, estão ajudando a criação da filha da empregada doméstica. Dão alimentos, vestuário, pagam o colégio, levam-na para passeios nas férias etc. Há, não se pode negar, uma relação de carinho, um vínculo afetivo. Mas por pura solidariedade, caridade, espírito cristão. Gostam muito dela, mas não consideram a menina como filha, nunca e jamais ela está no nível amoroso dos filhos do casal. Não se pode dizer que, neste caso, eles são "pais de criação", ou que foi estabelecida uma "filiação socioafetiva", que a garota deve ser considerada herdeira deles. Nada disso!

Fonte: Zeno Veloso para O Liberal/PA via Colégio Notarial do Brasil - Conselho Federal.